dezembro 04, 2008

Série: Algumas manhãs.

Preciosa demais (II)

Ele entrou, mas entrou feliz demais, e aquela felicidade que me entorpecia fez-me sentir nojo da que o entorpecia. Fez-me sentir pena e ao mesmo tempo raiva de mim mesma.
“Saia daí, Clarice. Corra ou deixe o vento te levar”. “Dá-lhe uma bofetada, destrua as flores, traga a mesa a baixo”. “Pergunte o porquê. Há uma explicação. Lembre-se do homem que você conheceu um dia”.
― Não é nada disso que você está pensando.
― Me dê um bom motivo para não pensar agora.
Clarice, ela é só uma amiga.
― É, eu acabei de descobrir que era uma amiga também.
― Você nunca foi só uma amiga.
― Não.
Eu o toquei pela última vez, e, mesmo que numa trombada, meu coração quebrou, amoleceu. Ele ainda era quente, mas como podia? A pele ainda era macia, mas isso eu entendia, já a temperatura.
Eu corria. Corria assim como o vento fazia ao irromper àquelas janelas. Eu deslizava pelas escadarias do prédio e não houve lágrimas nos primeiros momentos. Em choque ou não, meu coração não pulsava, mas eu sorri, sorri e sabe-se lá por quê.
O vulto de um Alencar vazou em minha vista quando as lágrimas caíram. E eu respirei o ar saturado da cidade marginalizada.
Os pássaros cantavam de verdade agora, os dançarinos riam e dançavam ao meu redor. A mentira me deu o abraço final.
― Já chega!
Clarice!
Às minhas costas a mentira.
― Não chegue perto ― e eu ainda usava uma saia rosada.
― Vamos conversar, por favor. Eu te amo!
― E o cinismo? A hipocrisia? AMOR?!
― Deixa disso.
― Deixe isso você. Deixe isso voltar a viver. Deixe isso se não é o que quer. Se for homem largue meu braço agora e deixe isso voltar.
Clarice, o que passa contigo? Nunca te vi assim.
― O que passa comigo já não importa. E se importou, importou há alguns dias, semanas. Ou melhor, diga-me você. Há quanto tempo deixou de importar?
E os carros faziam a orquestra no ambiente. O farfalhar de folhas lembrava a primavera brasileira e o cheiro de cigarro me lembrava o que eu tentava, a partir de agora, esquecer.
E para que resposta. Para que me satisfazer com o inevitável. Para que continuar culpando-o por algo que já estava decidido. E eu corri, corri como o vento.
Clarice?!
E eu virei até fitá-lo pela última vez.
― Eu nunca te amei.
― Pois eu sim ― e vi.

CLARICE!!!
E o mundo girou. Preto. O sol. Aqueles malditos olhos.
Clarice, você está bem? Ah, meu Deus! Ficará tudo bem, não se preocupe.
Preto novamente. E minha respiração rondava o lago da morte.
― Eu te amo. Te amo e menti. Clarice, fique comigo. Fique comigo.
Do preto ao branco eu vi. Era preciosa demais, ou melhor, havia me tornado preciosa demais.

― Pois eu sim.
E os faróis do caminhão se misturaram à luz do sol radiante. Radiante demais para ser de verdade. Os olhos lacrimejaram e deixaram seus rastros no céu seco pela humanidade. Os olhos se foram e os deixaram.
A preciosa caiu. Mas estava radiante. Radiante assim como quando se vê beleza na morte. Ela caiu radiantemente bem. Debruçou o peito achatado no chão e espalhou os cabelos louros no asfalto desnaturado.
O sangue pintou uma mecha dos fios dourados e deu a ela a cinematografia que sempre buscou. Ela caiu, mas caiu radiante aos meus olhos.
Os olhos, grandes olhos verdes, cintilaram no sol matutino. E a saia ainda era rosada e comportada. As pernas eram brancas como sempre as vi, e estavam pousadas no chão, sem vida. Ela havia se tornado sem vida.
O mundo girou preto. E eu a amava. Mas era preciosa demais para mim. Preciosa demais para este mundo preto. Preciosa demais...

dezembro 03, 2008



Uma primeira homenagem ao blog. Felicitações ao autor d'A Casa da Morte, que me presenteou com esse singelo selo. Espero que esse seja o primeiro de muitos, tanto para mim quanto para ele. E que os receptores dos meus três outros selos fiquem gratos assim como estou. Um abraço aos que lêem, e um asseno aos que visitam.

Minhas gratidões.


Presenteados: