Preciosa demais (II)
Ele entrou, mas entrou feliz demais, e aquela felicidade que me entorpecia fez-me sentir nojo da que o entorpecia. Fez-me sentir pena e ao mesmo tempo raiva de mim mesma.
“Saia daí, Clarice. Corra ou deixe o vento te levar”. “Dá-lhe uma bofetada, destrua as flores, traga a mesa a baixo”. “Pergunte o porquê. Há uma explicação. Lembre-se do homem que você conheceu um dia”.
― Não é nada disso que você está pensando.
― Me dê um bom motivo para não pensar agora.
― Clarice, ela é só uma amiga.
― É, eu acabei de descobrir que era uma amiga também.
― Você nunca foi só uma amiga.
― Não.
Eu o toquei pela última vez, e, mesmo que numa trombada, meu coração quebrou, amoleceu. Ele ainda era quente, mas como podia? A pele ainda era macia, mas isso eu entendia, já a temperatura.
Eu corria. Corria assim como o vento fazia ao irromper àquelas janelas. Eu deslizava pelas escadarias do prédio e não houve lágrimas nos primeiros momentos. Em choque ou não, meu coração não pulsava, mas eu sorri, sorri e sabe-se lá por quê.
O vulto de um Alencar vazou em minha vista quando as lágrimas caíram. E eu respirei o ar saturado da cidade marginalizada.
Os pássaros cantavam de verdade agora, os dançarinos riam e dançavam ao meu redor. A mentira me deu o abraço final.
― Já chega!
― Clarice!
Às minhas costas a mentira.
― Não chegue perto ― e eu ainda usava uma saia rosada.
― Vamos conversar, por favor. Eu te amo!
― E o cinismo? A hipocrisia? AMOR?!
― Deixa disso.
― Deixe isso você. Deixe isso voltar a viver. Deixe isso se não é o que quer. Se for homem largue meu braço agora e deixe isso voltar.
― Clarice, o que passa contigo? Nunca te vi assim.
― O que passa comigo já não importa. E se importou, importou há alguns dias, semanas. Ou melhor, diga-me você. Há quanto tempo deixou de importar?
E os carros faziam a orquestra no ambiente. O farfalhar de folhas lembrava a primavera brasileira e o cheiro de cigarro me lembrava o que eu tentava, a partir de agora, esquecer.
E para que resposta. Para que me satisfazer com o inevitável. Para que continuar culpando-o por algo que já estava decidido. E eu corri, corri como o vento.
― Clarice?!
E eu virei até fitá-lo pela última vez.
― Eu nunca te amei.
― Pois eu sim ― e vi.
― CLARICE!!!
E o mundo girou. Preto. O sol. Aqueles malditos olhos.
― Clarice, você está bem? Ah, meu Deus! Ficará tudo bem, não se preocupe.
Preto novamente. E minha respiração rondava o lago da morte.
― Eu te amo. Te amo e menti. Clarice, fique comigo. Fique comigo.
Do preto ao branco eu vi. Era preciosa demais, ou melhor, havia me tornado preciosa demais.
― Pois eu sim.
E os faróis do caminhão se misturaram à luz do sol radiante. Radiante demais para ser de verdade. Os olhos lacrimejaram e deixaram seus rastros no céu seco pela humanidade. Os olhos se foram e os deixaram.
A preciosa caiu. Mas estava radiante. Radiante assim como quando se vê beleza na morte. Ela caiu radiantemente bem. Debruçou o peito achatado no chão e espalhou os cabelos louros no asfalto desnaturado.
O sangue pintou uma mecha dos fios dourados e deu a ela a cinematografia que sempre buscou. Ela caiu, mas caiu radiante aos meus olhos.
Os olhos, grandes olhos verdes, cintilaram no sol matutino. E a saia ainda era rosada e comportada. As pernas eram brancas como sempre as vi, e estavam pousadas no chão, sem vida. Ela havia se tornado sem vida.
O mundo girou preto. E eu a amava. Mas era preciosa demais para mim. Preciosa demais para este mundo preto. Preciosa demais...
“Saia daí, Clarice. Corra ou deixe o vento te levar”. “Dá-lhe uma bofetada, destrua as flores, traga a mesa a baixo”. “Pergunte o porquê. Há uma explicação. Lembre-se do homem que você conheceu um dia”.
― Não é nada disso que você está pensando.
― Me dê um bom motivo para não pensar agora.
― Clarice, ela é só uma amiga.
― É, eu acabei de descobrir que era uma amiga também.
― Você nunca foi só uma amiga.
― Não.
Eu o toquei pela última vez, e, mesmo que numa trombada, meu coração quebrou, amoleceu. Ele ainda era quente, mas como podia? A pele ainda era macia, mas isso eu entendia, já a temperatura.
Eu corria. Corria assim como o vento fazia ao irromper àquelas janelas. Eu deslizava pelas escadarias do prédio e não houve lágrimas nos primeiros momentos. Em choque ou não, meu coração não pulsava, mas eu sorri, sorri e sabe-se lá por quê.
O vulto de um Alencar vazou em minha vista quando as lágrimas caíram. E eu respirei o ar saturado da cidade marginalizada.
Os pássaros cantavam de verdade agora, os dançarinos riam e dançavam ao meu redor. A mentira me deu o abraço final.
― Já chega!
― Clarice!
Às minhas costas a mentira.
― Não chegue perto ― e eu ainda usava uma saia rosada.
― Vamos conversar, por favor. Eu te amo!
― E o cinismo? A hipocrisia? AMOR?!
― Deixa disso.
― Deixe isso você. Deixe isso voltar a viver. Deixe isso se não é o que quer. Se for homem largue meu braço agora e deixe isso voltar.
― Clarice, o que passa contigo? Nunca te vi assim.
― O que passa comigo já não importa. E se importou, importou há alguns dias, semanas. Ou melhor, diga-me você. Há quanto tempo deixou de importar?
E os carros faziam a orquestra no ambiente. O farfalhar de folhas lembrava a primavera brasileira e o cheiro de cigarro me lembrava o que eu tentava, a partir de agora, esquecer.
E para que resposta. Para que me satisfazer com o inevitável. Para que continuar culpando-o por algo que já estava decidido. E eu corri, corri como o vento.
― Clarice?!
E eu virei até fitá-lo pela última vez.
― Eu nunca te amei.
― Pois eu sim ― e vi.
― CLARICE!!!
E o mundo girou. Preto. O sol. Aqueles malditos olhos.
― Clarice, você está bem? Ah, meu Deus! Ficará tudo bem, não se preocupe.
Preto novamente. E minha respiração rondava o lago da morte.
― Eu te amo. Te amo e menti. Clarice, fique comigo. Fique comigo.
Do preto ao branco eu vi. Era preciosa demais, ou melhor, havia me tornado preciosa demais.
― Pois eu sim.
E os faróis do caminhão se misturaram à luz do sol radiante. Radiante demais para ser de verdade. Os olhos lacrimejaram e deixaram seus rastros no céu seco pela humanidade. Os olhos se foram e os deixaram.
A preciosa caiu. Mas estava radiante. Radiante assim como quando se vê beleza na morte. Ela caiu radiantemente bem. Debruçou o peito achatado no chão e espalhou os cabelos louros no asfalto desnaturado.
O sangue pintou uma mecha dos fios dourados e deu a ela a cinematografia que sempre buscou. Ela caiu, mas caiu radiante aos meus olhos.
Os olhos, grandes olhos verdes, cintilaram no sol matutino. E a saia ainda era rosada e comportada. As pernas eram brancas como sempre as vi, e estavam pousadas no chão, sem vida. Ela havia se tornado sem vida.
O mundo girou preto. E eu a amava. Mas era preciosa demais para mim. Preciosa demais para este mundo preto. Preciosa demais...